Uma breve história de amor e a maldade.

 

Era branquinho, minúsculo, tremia de frio. Dentro de uma mochila azul de alguém que tinha tido alguma piedade daquela pobre criaturinha rejeitada e com poucas chances de sobreviver. Ela corria, costumeiramente atrasada, e parou. Parou e encantou-se por aquele serzinho tão indefeso, tão pequeno. Uma colega teve uma idéia: levá-lo a uma tia, que sofria de uma tristeza profunda por ter perdido um outro animalzinho que lhe fizera companhia por tanto tempo, mas o único problema era que a colega só poderia levá-lo na segunda. Era sexta. Cheia de amor no coração, ela, num instante a sua idéia mais genial: abrigaria o bichinho no  fim de semana, até que ele pudesse ir para seu novo lar. Pegou-o e abrigou-o junto ao seio. Os colegas de turma reclamavam: “Esse cachorro é de rua, sujo, cheio de pulgas. Não fique pegando nele assim!”. Ela não sabia o que os outros viam, porque abrigado no seu colo só havia um pobre filhotinho inocente e precisando de cuidado.  E mesmo sabendo que enfrentaria os protestos do pai e do seu outro cachorro, que veria ameaçado seu reinado, seguiu para casa feliz: cachorro branco, flanela laranja. Mimos, cuidados e todo instinto maternal despertado por qualquer ser filhote. Nela, esse instinto parecia ser duplicado. Cachorro branco, bolsa vermelha. Exibia-se orgulhosamente com seu mais novo amigo. Um fim de semana fora suficiente para rir com as quedas dele, que não conseguia sustentar-se bem com aquela barriga imensa, habitada por vermes, pesados demais para aquelas patinhas tão pequenas. Fim de semana suficiente para acarainhá-lo e perceber, de repente, que ele já fazia parte de si. Mas por precaução não lhe dera um nome. Era demais. Chamava-o apenas de cachorrinho, como se chamam todos os cachorros, mesmo sentindo que ele não era mais um.A segunda feira chegou e com ela, os olhos inchados de um domingo de choro. Como desfazer-se dele? Como cumprir a palavra se aquele filhote parecia ter sido seu pra sempre? Fora entregá-lo à nova dona, como quem vai a um enterro. Embora a moça tivesse amado o cachorrinho, ele fora, solenemente, rejeitado pela irmã, para a alegria da nossa personagem, que procurou sem muito afinco um novo lar para ele. Tudo eram desculpas. Ele era seu filhote. Marcava algo bom na sua vida, caminhos que se abriam, uma luz lá no finzinho do horizonte. Ainda que estivesse longe, a estrada era aquela. batizou-o Stravinsky. A vida virou um inferno, a casa virou um caos, uma poluição sonora sem fim. Os filhotes degladiavam-se como dois bons irmãos costumam fazer. Mas  o que importa? Ela sentia que salvara uma vida. E transbordava de felicidade quando recebia os carinhos que só os bichos podem trazer. Um preto e um branco. Lindos. Cada um ao seu modo, mas sem o contraste maniqueísta de suas cores.  Os problemas se acumulavam: ela não dava conta de cuidar dos dois, por mais que se desdobrasse, o namorado já não queria mais frequentar sua casa. O pai falava do desgosto de não conseguir entrar naquela casa dominada por dois cachorros. E ela não se importava. Eram seus amigos, seus filhos. E como toda mãe ela era tolerante, e ofendia-se com quem falava mal dos seus filhos.  O tempo passou, aquele filhotinho crescia. Ela sentia que não era mais capaz de abrigá-lo de forma saudável, mas como abandonar aquele serzinho tão frágil e que fazia parte da sua vida? A solução apresentara-se dentro dos olhinhos brilhantes de duas crianças, que como todas, sonhavam em ter um bichinho para cuidar, para brincar. Ela lembrou-se da infância. De como queria ter um bichinho para ser seu companheiro. Lembrou da felicidade que a tomou, quando pode ter pela primeira vez um filhotinho nos braços. Pensou em quanto ele seria feliz correndo num sítio e quanto faria feliz aquelas duas crianças, que como ela, outrora, sonhavam com um bichinho. Não sem dor, não sem sofrimento, ela, como uma boa mãe, deixou seu filho partir, porque era o melhor pra ele.

E de fato, ele fora feliz, correu, brincou, sujou-se de terra. Mas, infelizmente, estava contaminado pela “maldade” presente em todos os cachorros e perseguia galinhas. Sim, galinhas. Aquelas que seriam mortas para o almoço de amanhã. Aquelas que, para seus donos, eram números, nem nome tinham. Talvez eles nem soubessem qual era qual. Mas sabiam quantas eram. Galinhas eram dinheiro. E as pessoas amam mais o dinheiro do que os bichos. Às vezes amam mais o dinheiro que as pessoas. Pena que o dinheiro não possa amar de volta. Não possa nos reconhecer pelo cheiro, ou pela voz. Não abane o rabo ao nos ver chegar, nem lambam nossas lágrimas ao nos ver chorar. Mas ainda assim, as pessoas amam o dinheiro. E alguém bom, que ama o tal do dinheiro, e que não admite que cachorros corram atrás de galinhas, num ato de amor ao dinheiro, deu veneno ao cachorro mau. Pronto. Problema resolvido. As galinhas do almoço estavam salvas. A alegria de Stravinsky não mais.

Ela, só soube da morte do seu amigo, muitos dias depois. Uma dor profunda e aguda a abatera. Uma culpa, por não tê-lo visitado no seu novo lar. Mas, de repente, pensara que talvez tenham caminhado juntos até o tal horizonte que ela via tão distante quando o adotou. Ela chegara lá. No começo daquela luz. E seu amigo despediu-se: agora vá sozinha, siga seu rumo. E do amigo querido sempre ficará a lembrança na bolsa branca, sem mais o cachorro vermelho.

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