Resgate do bom gosto? Manifesto pela liberdade de “enfeiar-se” e ser cafona .

Há muito eu tinha feito o blog, mas nunca tinha tido alguma motivação que me levasse  a escrever algo. Hoje, assistindo o programa Esquadrão da Moda no SBT, a inspiração veio.

É revoltante ver a maneira como o programa é pensado e produzido. No programa de hoje, fora apresentada uma menina despojada, com valores completamente diversos aos impostos. Para mim ela era linda! Tomada por uma personalidade ímpar, escolhia viajar a comprar roupas (convenhamos, que uma escolha muito mais inteligente!), vestida com seus casacos masculinos, blusas e calças rasgadas, cabelo virgem e sem corte  trazia em si um universo de significações que era só seu. Era ela e ela era. Havia um sentido em estar vestida daquele jeito. É inegável e facilmente perceptível que roupa tem um universo significativo que vai muito além de pedaços de PANO (sim pano, não tecido!). A roupa comunica, traz em si uma carga simbólica que, talvez, só possa ser entendida por quem a veste. A roupa é uma extensão da psique. É uma forma de exteriorizar o que lhe é intrínseco. A sua identidade, suas manifestações, valores estão todos ali postos muitas vezes de uma maneira quase que inconsciente. Mostrar-se ou esconder-se é uma questão de escolha e fala das suas prioridades. Certa feita, assisti um documentário com mulheres islâmicas, que viviam na Espanha (não achei mais o link, o que é uma pena) e defendiam o direito de usar seus lenços característicos em lugares públicos (vídeo contemporâneo às discussões acerca da proibição de símbolos religiosos em lugares públicos na França.). A defesa delas estava tão imbuída de valores, de verdade, de sentido e de razão, que tive vontade de cobrir a cabeça também. Para elas, esconder-se tinha um significado especial: ser valorizadas por quem são, em essência, e não pelo externo, pelo físico, por quem aparentam ser. Questionavam sobre a noção atual de liberdade, para qual, ser livre é poder despir-se e não cobrir-se. Embora, a questão islâmica seja muito mais complexa, por fatores diversos (história, religião, subjugação da mulher), e não é a minha intenção adentrar por esses melindres, me chamam atenção as questões das distorções de valores, nas quais só somos livres para nos despir. Voltando ao caso do Esquadrão da Moda, um dos apresentadores inquiria a pobre moça, questionando-a a respeito do que ela se escondia. As respostas tímidas, quase inaudíveis falavam por si. Não satisfeito com a resposta não dada (talvez ele não saiba ler nas entrelinhas!) o mesmo apresentador, fala que é inadmissível uma moça com “aquele corpo” esconder-se. E eu pergunto: por que não, cara pálida? Quem diabos inventou a regra que a gorda tem que esconder-se e a magra tem que mostrar-se? Quem disse que toda mulher precisa ser um “mulherão”? Em que livro, em que regra, em que código? E ainda que estivesse codificado, haveria a possibilidade de questionar: isso é determinado por quem? Em que condições? Quais valores estão embutidos nessas regras?

Há quem defenda que programas como esse promovem o resgate da auto-estima. Discordo. Acredito que há um resgate de auto-estima quando a própria pessoa procura o profissional de moda ou de qualquer outra área e solicita algum tipo de ajuda. E ainda  sendo procurado, o mesmo TEM QUE ouvir o cliente, suas necessidades e suas orientações não podem extrapolar as questões de gosto, prioridades, individualidades. Forçar alguém a aceitar as verdades estéticas impositivas da família, dos amigos, da MODA, é bem complicado. Hoje uma professora falava sobre o uso de adjetivo para definir questões culturais. Feio, bonito, bom, ruim, melhor, pior são valores relativos e redutores. Bonito pra quem? E o que diabos é bonito? E não adianta me dizer que a pessoa tem o direito de não aceitar o desafio. Sim, ela tem. Mas qual o real livre-arbítrio de alguém  que foi levado pelos amigos, que julgam que ela veste-se mal (na maioria das vezes o “participante” nunca havia nem pensado sobre suas roupas como um problema.) em frente a todo um aparato televisivo, cercada por microfones, amigos, e os “donos da verdade” que a ridicularizam em rede nacional? Num primeiro momento, ela até resistiu. Quando a apresentadora disse: “Você tem 10 mil reais para gastar em roupas”, a menina retruca: “Posso gastar em viagens?”. Essa, sim era ela! Ali estava a verdadeira essência (prestes a ser massacrada) daquela moça que acabava de entrar num dos programas mais desrespeitosos que eu já pude ver.

Peter Stallybrass, em seu livro “O casaco de Marx” (obrigada Malu Fontes!), começa tratando da questão do valor afetivo da roupa. E dentre muitos exemplos dessa relação, fala sobre a criança que guarda como tesouro sua fralda suja, encardida, rasgada e não permite que ninguém toque, lave e  muito menos se livre daquele objeto de tanta importância para ela. A nossa relação com roupas é mais ou menos essa (com as variações de apego de cada um). Lembramos da roupa do primeiro encontro, guardamos a primeira fralda, o primeiro vestidinho e outras coisas. Jogar todo o guarda-roupa de uma pessoa fora é uma violência sem tamanho. Naquele lixo, vão embora sentimentos, pessoas, lugares, viagens lembranças, amores. Inúmeras vezes, vi pessoas chorando ao verem sua história sendo prontamente descartada pelos “deuses-da-moda-donos-da-verdade”. Ademais, os valores , os modos (sim, a palavra moda vem de modos!), as crenças da vítima do programa vão sendo diluídos numa lavagem cerebral que institui os valores alienígenas de certo e errado, bonito e feio (esse bombardeio de informações é feito antes da pessoa sair para comprar parte das roupas “sozinha”.).   E é nesse aspecto que eu aplaudo de pé a “Stefhany, absoluta”, que foi ao programa e disse não. Eu não gosto das roupas dela. Mas isso sou eu, Lívia, pessoa, que vem de um outro ambiente, que vive uma outra vida. Eu acho que aquelas roupas ficam fantásticas nela! Somente por acreditar no que veste. Ela diz que é a absoluta com plena convicção no que diz, e de fato o é! É tão absoluta que teve coragem de dizer à “deusa da moda”:  “eu nunca me vestiria como você, assim sem graça”, “essa calça que você me deu é horrorosa, não combina comigo!”. É absoluta porque não permitiu que cortassem seu cabelo, que para ela significava beleza e feminilidade. Ela não abriu mão dos seus valores e permaneceu a mesma de sempre, mesmo sendo chamada de brega e horrorosa em frente às câmeras e ter sido criticada pela imensa maioria das pessoas.

Ao contrário de Stefhany, a pobre menina do episódio não foi absoluta e não se manteve dona de si. Foi engolida pelo “bom gosto” do SBT (hã?). Deixou de ser Betinha (facilmente reconhecida pelos vários casacos, tênis e calças rasgadas), para ser mais uma loira com cabelo repicado, camiseta “podrinha” (porque é trendy) e saltos altíssimos. Completamente desfigurada, sem identidade, mas teoricamente “linda”… Não parece engraçada a semelhança entre a roupa da apresentadora e da orientanda? (Uma pena não ter uma foto do antes!).

Foto: Divulgação
O melhor de tudo é a legenda

Por isso, que peço aos senhores donos da razão e da verdade, que por favor, nunca se metam com meus macacões coloridos, minhas calças de homem, meus chapéus estravagantes, meus lenços coloridos, minhas galochas. Mandareio-os para o lugar merecido por todos aqueles  cheios de razões e de verdades absolutas. Absoluta por absoluta,  prefiro com Stefhany e toda sua personalidade, extravagância, brilhos e paetês! Tudo com personalidade e muita purpurina!

Vamos lutar pelo direito de ser cafonas, feias,  fora de moda  e felizes em paz!

5 comentários sobre “Resgate do bom gosto? Manifesto pela liberdade de “enfeiar-se” e ser cafona .

  1. Verdade!Roupas com as quais nos identificamos são quase uma segunda pele. Quem não experimentou a sensação estranha que nos invade quando encontramos alguém usando uma roupa que um dia nos pertenceu? Nesse momento, sendo o “herdeiro” um desconhecido, de alguma forma estabelece um diálogo íntimo conosco.

  2. Legal o texto, livinha. O mais interessante é como o padrão de beleza vai se impondo de tal forma que qualquer pensamento contrário se torne heresia. Você deve ter reparado, mas uma coisa que mudou MUITO nos últimos cinco anos foram os cabelos das mulheres, especialmente as negras. Hoje em dia quase todas as mulheres de Salvador milagrosamente têm cabelo liso, a despeito de suas cargas genéticas. Elas nem percebem o contraste que é aquilo. Poderia-se argumentar que cada uma tem direito de fazer o que bem quiser com seu cabelo, de modo que se sinta melhor. Concordo. Desde que isso viesse da própria pessoa, e não uma tentativa desesperada de se encaixar em um padrão, padrão este que nem nosso é…

    1. Magalhães é um caso à parte! Filha dos donos do canal e formada em Jornalismo a única alternativa foi colocá-la em um quadro onde a sua falta de talento fosse menos evidente! #fail Hahahaha

  3. sei que é um pouco tarde para comentar esse post de 4 anos atrás… mas não resisti pois a “vítima” em questão sou eu! sim.. eu passei pelo esquadrão da moda, eu sou e continuo sendo a Betinha e concordo com cada palavra que vc colocou no que diz respeito ao q senti. nunca ninguém traduziu tão bem o sentimento que eu tinha por minhas roupas e minha identidade. “Era ela e ela era”. Não sei se isso muda alguma coisa… mas não mudei… voltei a ser o que sempre fui, continuo sendo criticada pelas mesmas coisas… mas aprendi uma grande lição no programa: sua essência vale mais… e não preciso mostrar nem provar isso pra ninguém. Agradeço a oportunidade de ter participado do programa… foi uma experiência boa, engraçada, foi diferente e desafiadora… posso até ter tentado me “adequar” aos padrões… mas não consegui.

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